Saramago assim imaginou e contou essa história em “As Intermitências da morte.” A palavra intermitência significa intervalo, algo que é recorrente, e foi essa façanha que a morte fez por um tempo: parou de matar a população de um determinado país.
No início todos se sentiram abençoados pelo dom da imortalidade, mas não passou muito tempo para que as graves consequências no campo da política, sociedade, igreja, além das funerárias, é claro, tornassem-se visíveis diante essa ausência intermitente. Imagine você, qual explicação plausível a Igreja poderia teorizar visto que sem morte não há ressurreição? E as funerárias então? A falência bateria à porta sem a principal matéria-prima que as mantém vivas. O governo não conseguiria gerir a exponencial população formada por muitos, muitos velhos, pois as pessoas à beira da morte entravam em estado de “morte suspensa”, uma espécie de coma consciente.
Esse livro nos traz uma profunda reflexão sobre o papel das instituições como governo, igreja, mídia, bem como sobre a vida, a morte, personagem central da trama, e o amor. O final desse livro é bizarramente incrível, demorei um tanto pra ler porque é necessário concentração para não perder o fio da meada diante das idiossincrasias textuais e ortográficas de Saramago. Foi um dos melhores do ano
Abaixo deixo as passagens que mais me tocaram:
“porque as palavras, se não o sabe, movem-se muito, mudam de um dia para o outro, são instáveis como sombras, sombras elas mesmas, que tanto estão como deixaram de estar, bolas de sabão, conchas de que mal se sente a respiração, troncos cortados(…)”
Não obstante por um breve tempo a mente humana a fim de nela criar, também por breve tempo, uma certa e particular maneira de dar sentido ao mundo, de procurar entendimentos dessa mesma realidade. E não entenderam, pensou a morte, e não a podem entender por mais que façam, porque na vida deles tudo é provisório, tudo precário, tudo passa sem remédio, os deuses, os homens, o que foi, acabou já, o que é, não será sempre, e até eu, morte, acabarei quando não tiver a quem matar (…)
Pela primeira vez na sua vida a morte soube o que era ter um cão no regaço.
-Não entendo nada, falar consigo é o mesmo que ter caído num labirinto sem portas
-Ora aí está uma excelente definição da vida
-Você não é a vida
-Sou muito menos complicada que ela
-Alguém escreveu que cada um de nós é por enquanto a vida
-Sim, por enquanto, só por enquanto